A
revista Raça Brasil publicou uma extensa matéria em sua edição deste
mês sobre o crescimento dos casamentos nos espaços sagrados das
religiões de matriz africana. A reportagem chamou atenção para um fato
pouco conhecido, a dificuldade de reconhecimento, pelas autoridades, de
cerimônias de casamentos não cristãs. Embora não signifique que as
religiões afro sejam praticadas apenas por descendentes de escravos, mas
estatisticamente eles ainda são a maioria.
O babalorixá Jorge Kibanazambi explicou que na cultura ioruba,
oriunda da África, a família é "a base fundamental da sociedade e o
pilar que dá condição para a prosperidade do ser humano".
Ele diz que mesmo sem o conhecimento da cerimônia pela sociedade em
geral, "Existe todo um ritual para a o casamento, com preparativos até a
consumação da união... Dentro da comunidade de terreiro... acreditamos
que a benção dos pais, da família, dos amigos é importante para a
felicidade dos noivos.
Através de cerimônia/ritual, invoca- se a energia
conhecida como Orixá Oxalá para contemplar o casal que constituirá a
nova família de 'coisa' boa, filhos, enfim, riquezas que o ser humano
não tem condições de conceder. Os familiares e amigos expressam por meio
dos presentes oferecidos ao casal os desejos de felicidade, em que cada
objeto tem seu significado específico."
No Brasil, devido à miscigenação de raças, os costumes e hábitos dos
escravos africanos foram modificados pela influência das muitas culturas
que formam a população. Isso inclui as questões religiosas. O que
sempre predominou foi o ensinamento da Igreja Católica Romana. Só
deixou-se de considerar o catolicismo como a religião oficial do país
depois da proclamação da República. Até então, todos os que ensinavam
algo que diferente dos preceitos católicos não tinham o reconhecimento
oficial de sua validade.
Jorge Kibanazambi lembra que desde o período colonial os sacramentos
só eram aceitos se fossem oriundos do catolicismo. Isso ficou tão
inserido na cultura das pessoas que, mesmo após a permissão e o
reconhecimento da Constituição Federal de 1988, continua sendo hábito da
maioria dos seguidores de religiões afro consumar os batizados e
casamentos na igreja católica.
Isso ocorre por que "Muitos têm a percepção que é a única Instituição
ainda em condições legais para realizar tais atos... Mas cada religião
tem seus rituais e suas cerimônias para todas as necessidades de seus
fiéis. E as de matriz africana incluíram-se nessa colocação".
Marcio Marins, coordenador de articulação política do Fórum
Paranaense das Religiões de Matriz Africana, entende que continua
difícil separar a ligação do catolicismo com a religião afro. "Até mesmo
babalorixás e yalorixás se casam fora dos terreiros. Essa ação nos
ajuda a fortalecer a religião para que possamos reconhecer que somos de
matriz africana com vários nomes, mas não precisamos recorrer a outras
entidades religiosas para realizar a cerimônia de casamento".
Para Marcio, a união matrimonial celebrada no candomblé aumenta a
autoestima da população de terreiro e faz com que cada vez mais as
pessoas busquem e reivindiquem seus direitos civis.
Isso nem sempre é fácil, em 2002, Gorete Dorneles Machado ficou viúva
e tentou provar a validade de sua união com Renato Fernando Guedes,
realizada num terreiro de Umbanda em 1983. Gorete solicitou a pensão
pós-morte do marido ao INSS, mas ela foi negada. O motivo alegado foi
que ela não tinha uma união estável.
Quando apresentou uma certidão de casamento emitida pela Federação de
Cultos Afros, recebeu a informação de que ela não tinha validade. Foi
preciso recorrer ao poder judiciário.
Com o apoio do babalorixá Dyba e da ONG CEERT (Centro de Estudos do
Trabalho e Desigualdades), que luta pelos direitos da comunidade afro, a
viúva percebeu que conseguira a ajuda necessária. O julgamento ocorreu
na 8ª Vara Civil do TJ/RS e o resultado foi favorável à Gorete, por
unanimidade.
"Daria um filme aquele julgamento, fiz a sustentação oral num
tribunal repleto de pessoas de religião de matriz africana com
atabaques, com as indumentárias, lutando por seus direitos. Pela
primeira vez o judiciário brasileiro reconhecia a validade do casamento
nas religiões de matriz africana, afirmando que o casamento no terreiro
tem a mesma validade que o casamento na catedral, na mesquita, na
sinagoga... ", declara Hédio Silva Junior, diretor executivo da CEERT e
advogado de Gorete na ocasião.
Embora não haja números oficiais, as associações que defendem os
direitos das religiões afro-brasileiras acreditam que o número de
casamentos cresce não só dentro dos terreiros, mas também dentro de
igrejas católicas, que passaram a fazer referências ao candomblé.
Silvana Veríssimo integra o Conselho Nacional de Direitos da Mulher e
é seguidora da religião afro. Em 2009, relembra, foi realizado no
interior de São Paulo, um dos primeiros casamentos em um terreiro.
"Foi uma experiência maravilhosa, o terreiro encheu de gente, mesmo
de não adeptos das religiões de matrizes africanas, que demonstraram o
respeito pela religião e por seus adeptos. Compareceram tanto a família
da noiva quanto do noivo. O casamento torna-se uma oportunidade para que
as pessoas conheçam mais o funcionamento de um terreiro e isso faz com
que quebre preconceitos por falta de conhecimento", afirma.
A lei brasileira exige que alguns detalhes devam ser observados para que a cerimônia seja reconhecida:
● É válido o andamento da documentação antes ou depois da cerimônia.
Quando posterior, o prazo é de 90 dias. Os documentos devem ser
entregues no cartório que irá constituir a equiparação do casamento
civil.
● No lugar de um juiz de paz, a união é realizada por um sacerdote da
religião. O templo deve estar regularizado, e o sacerdote constituído
de poderes para exercer sua função.
● O terreiro deve ter o seu estatuto e atas, onde uma diretoria
constituída reconhece o sacerdote como representante. A partir disso,
nem o presidente da República pode dizer que não há a devida validade. O
Estado não exige formação para o sacerdote religioso, mas tem que haver
uma organização que o reconheça como autoridade.
● No terreiro também deve existir um livro de registros para a
expedição de uma certidão, que posteriormente é levada pelos noivos ao
cartório. Outro item é a presença de testemunhas na cerimônia.
● A forma do ritual não é relevante na questão jurídica. O casamento
tem as mesmas características que nas demais religiões e segue as mesmas
questões de validade, ou seja, entre pessoas de sexos distintos e as
que ainda não foram casadas.
Texto publicado originalmente no Portal Geledés
art.5º Constituição Federal
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada por sua Contribuição!